sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

As observações no campo da investigação


Foi minha preocupação, antes e durante essa jornada acadêmica, atentar para o grau de autonomia ou sujeição das pessoas, em relação aos condicionamentos socioculturais, sobretudo os advindos da religião. Esteve sempre presente o cuidado de aferir como cada pessoa reage às imposições e até que ponto ela se conforma com as regras estabelecidas para sua integração ao ambiente social. Desnecessário se torna esclarecer que essa investigação resulta de um posicionamento, de uma experiência pessoal refletida, já narrada em tópicos anteriores deste trabalho. Necessário, porém, se torna afirmar que tal experiência não constitui privilégio de quem quer que seja, ela está aberta a tantos quantos estejam dispostos a analisar a realidade e suas circunstâncias. É mister que todo aquele que se deseja autônomo, crítico e sintonizado com a realidade seja rigoroso consigo mesmo no propósito de buscar e rebuscar as origens de seu percurso religioso e de sua fé (ou crença). Muito embora esteja caracterizado aqui meu comportamento cético quanto à mensagem religiosa, não desejo apresentá-lo como um novo modelo de compreensão da vida, mas como uma escolha refletida, criticada. O que pretendo, sem dúvida, é contestar a forma de cooptação que as religiões exercem sobre as crianças, ou seja, realizam a abordagem sobre os infantes num período em que eles não possuem condições ideais para analisar a validade da mensagem recebida, mas a assimila, em virtude de seu poder coercitivo. Pior de tudo, consoante já repetidas vezes mencionada neste trabalho, é a dificuldade de as pessoas decidirem, já na idade adulta, por uma abordagem crítica desses ensinamentos, uma vez que eles adquiriram, pela repetência sedutora, o estatuto de verdade. Este é o desafio não aceito pela grande maioria e que justifica, neste trabalho, uma investigação no ambiente social onde os membros sejam, ao mesmo tempo, adeptos de crença religiosa (provavelmente) e profissionais da educação.

Como instrumento metodológico de investigação, realizei uma consulta junto a educandos de pedagogia, por dois motivos: eles são, como alunos, partícipes de uma proposta de educação transformadora em sentido amplo, isto é, não conciliável com o status vigente; por outro lado, eles exercem, em sua maioria, a função docente, em outros espaços. Em ambos os casos, há um compromisso de constituição de sujeitos autônomos e infensos à alienação. Para tanto, cerca de quarenta questionários foram distribuídos, mas apenas quinze foram devolvidos. Há certamente dificuldades para a devolução de todos os questionários, em conta o desinteresse de uma parcela dos receptores e o desencontro de muitos com quem está realizando o levantamento de dados. Mas as respostas levantadas permitem concluir, por amostragem, que as hipóteses aventadas se confirmam quase plenamente. Significa dizer que o universo de profissionais de educação já formados e em formação está perfeitamente sintonizado com os preceitos de uma sociedade que, por força da colonização e dos condicionamentos socioculturais e civilizatórios, desenvolvidos através dos tempos, se tornou cristã. Conquanto não tenha observado nos questionários qualquer sentimento contrário ao pensamento cristão, cumpre ressalvar que essa posição não é unânime e há pessoas, em minoria, que não professam qualquer credo. Isso, porém, não foi possível captar nas respostas, mas outras atitudes pacientes de investigação, realizadas em contatos informais e aparentemente desinteressados, no mesmo ambiente pedagógico, permitem afirmar que há um número reduzido de pessoas cuja proximidade com a religião é nula, conquanto essas mesmas pessoas vivenciem algumas práticas sócio-religiosas, tais como batismo de filho recém-nascido, casamento na igreja, utilização de alianças como instrumento identificador de noivado (mão direita) e casamento (mão esquerda) etc. É bem verdade que as transformações, muito lentas, que se realizam no seio da sociedade, fazem do uso da aliança, nos tempos de hoje, mais um adorno obrigatório que propriamente um compromisso, embora este ainda seja respeitado por algumas camadas sociais que seguem os postulados religiosos. O que pretendo é demonstrar que a adoção de costumes oriundos da religião por pessoas não alinhadas com o pensamento religioso bem demonstra a força persuasiva e sedutora da mensagem cristã, significando que seu poder de penetração nos grupos sociais contribui, outrossim, para o estabelecimento de hábitos e costumes culturais.

É facilmente identificado nos adeptos dos credos cristãos, formados na estrutura do senso comum, o desejo de receber graças e bênçãos. Esse procedimento se torna mais evidente quando o fiel, inclusive o estudante de pedagogia, insatisfeito com os resultados de sua permanência numa igreja, migra para outra, igualmente cristã. Por outro lado, quando sua presença em determinada igreja coincide com períodos de prosperidade material, vida afetiva satisfatória e saúde regular, certamente essa igreja será eleita como a verdadeira mensageira de Deus. Não raro, em algumas igrejas emergentes e seitas , comenta-se entre os crentes a ocorrência de milagres, a maioria dos quais foi obtida através da oração e da concomitante contribuição pecuniária para os cofres da respectiva igreja. Em muitos casos, principalmente nas igrejas pentecostais, a contribuição em dinheiro, ou oferta, é condicionante para que a graça seja alcançada. Muitas vezes, é possível assistir, pela televisão, aos diagnósticos que algumas fazem para aqueles que não obtiveram graças, responsabilizando a falta de engajamento numa corrente específica de bênçãos, engajamento que só se materializa pela oferta.

Outro tópico da observação que deixa patente a necessidade do sobrenatural é, além da opção de alguns pelo espiritismo, a simbiose que outros investigados fazem entre o pensamento cristão e o kardecismo. Embora esta corrente se permita coexistir pacificamente com o cristianismo, admitindo até correlacionar o espiritismo com as escrituras ditas sagradas, é do conhecimento de muitos a posição de algumas igrejas cristãs, principalmente a católica, contrária aos postulados do kardecismo. Como a liberdade religiosa é ilimitada, atualmente, nada impede que essa prática simbiótica seja gradativamente cultivada, até porque o indivíduo que assenta sua experiência no senso comum busca mesmo é a instância do sobrenatural que traga resultados, tanto na vida temporal quanto na eternidade. Aqui, igualmente, se detecta, mais uma vez, resistência àquilo que me referi em etapa anterior do trabalho: o exame da possibilidade, isto é, compreender e explicar a mediunidade e a reencarnação como princípios não apenas críveis mas também possíveis, viáveis à luz de nosso aparelho psíquico perceptivo. Às vezes, surgem indícios de inconsistência no espiritismo, mas a vantagem de crer incondicionalmente é tão grande, que examinar com critério e rigor suas premissas epistemológicas pode provocar um grande desconforto espiritual ou, mais precisamente, uma grande desestruturação do psiquismo do crente. Tal qual o cristão recebera objetivamente como válido o conjunto de ensinamentos que consagra o poder da oração, os milagres, a revelação divina, etc. como fonte de felicidade e não ousa submetê-lo a uma reflexão, o adepto do espiritismo também não se aventura a uma investigação fora dos muros delimitados por Kardec e afirma ter provas incontestáveis da legitimidade de sua crença.

Mas o ponto central, mais emblemático, nas respostas aos questionários, é quando o investigado é instado a manifestar-se sobre os seguintes pontos:

sua adesão ao credo aconteceu por uma escolha sua, de sua família ou por outra orientação?
como educando em Pedagogia, você entende que o ensino religioso deva ser ministrado a crianças/adolescentes? Caso afirmativo, os pais devem participar da escolha do credo?

Estas perguntas não se encontram próximas no questionário; pelo contrário, elas se situam, respectivamente, no meio e quase ao final do questionário. Na primeira, das quinze respostas, onze afirmam ter escolhido pessoalmente, três contaram com intercessão da família e uma não respondeu; na segunda, nove respostas, incluindo os que, na primeira, afirmaram ter escolhido por conta própria, manifestaram-se favoráveis à interveniência dos pais na escolha dos credos dos filhos. Ora, todos nós sabemos que a introdução à catequese sempre ocorre pela iniciativa da família, que escolhe para os filhos o credo por ela praticado, naquele momento. Mesmo quando, de modo excepcional, os pais não se interessam pela educação religiosa de seus filhos, o seu ambiente sociocultural produz sempre intermediações que acabam por levar a criança a essa ou aquela igreja. Trata-se, pois, de uma evidente ingenuidade admitir que aqueles, na infância, optaram pela crença que professam nos dias de hoje. Poder-se-ia afirmar que há um esforço muito grande para não perder a referência balsâmica que a crença lhes proporciona e, concomitantemente, demonstrar que suas cabeças não foram feitas. Por outro lado, em conta a boa vontade demonstrada no preenchimento do questionário, sinto-me inclinado a acreditar, também, que a resposta de escolha pessoal na infância, sem intervenção de quem quer que seja, se deva a uma solene ingenuidade. Creio até ser desnecessário um questionário para investigar essa prática: todos sabemos que a escolha da religião dos filhos, por motivos culturais fortemente arraigados, é prerrogativa de seus pais ou responsáveis. Constata-se, nessa interpretação, que o pátrio poder se permite a faculdade de escolher a religião ou a concepção de mundo dos filhos, desconhecendo, certamente, que tal escolha representa flagrante invasão da liberdade de pensamento.

Tais considerações, contidas na amostragem, tendem a revelar uma significativa inobservância aos princípios fundamentais da moderna pedagogia, qual seja a de impor à criança determinada concepção de espiritualidade, reservando aos pais o uso dessa prerrogativa. Ora, como pode o profissional de educação que fala no aluno como partícipe do processo de ensino/aprendizagem admitir que a escolha de algo tão importante para sua vida será determinada por outras pessoas? Se um dos pilares de nosso projeto pedagógico é a constituição de sujeitos, não estará prejudicada, naquela avaliação, a concepção teórica que a justificou? Quem teria percepção suficiente para identificar, na criança, o momento oportuno para intervenção do educador, a zona de desenvolvimento proximal (ZDP) de Vygotsky, (REGO:1995, p.70-75), visando a construção do conhecimento religioso básico? Em que momento os apologistas do ensino religioso para crianças situam essa ZDP? Em exame mais aprofundado do assunto, não será provável que tais procedimentos estejam vinculados a uma psicologia de massa, a qual justifica a homogeneização do comportamento humano e despreza qualquer iniciativa pedagógica de emancipação do indivíduo? Que diremos, então, dos temas abordados em disciplinas pedagógicas, durante o Curso, que sugerem reflexão e alternativas ao pensamento dominante? Será que tais conteúdos, esbarrando na força do conhecimento culturalmente sedimentado, têm vida útil até que sejam submetidos a avaliação pelos professores das respectivas disciplinas e se volatilizam depois dela? Sim, eles não são apreendidos, não são apropriados e se prestam tão-somente para o cumprimento da etapa formal do curso, a avaliação, que permitirá ao graduando a obtenção do diploma e, consequentemente, o exercício da função de pedagogo. Obviamente, os trabalhos que foram apresentados para a referida avaliação sempre corresponderão às expectativas de uma educação de vanguarda, mas o futuro pedagogo sabe, de antemão, que a grande maioria daqueles pressupostos não será aplicada efetivamente no dia-a-dia pedagógico, porquanto esbarra na estrutura tradicional. Posso, por exemplo, citar excelentes trabalhos de sala de aula, interpretando o pensamento alternativo de Nietzsche, Michel Foucault, Dürkheim e outros, os quais se volatilizam, conforme dito anteriormente, após a avaliação. O resultado, sem dúvida, é a permanente dissensão entre teoria e prática.

Apesar dos diversos empecilhos e do longo percurso a ser percorrido, não há por que desanimar, pois, se os olhares se voltarem para trás, ver-se-á que já não vivemos os tempos da tirania inquisitorial, concordar-se-á que os projetos educacionais já são discutidos fora das esferas governamentais e eclesiásticas, o que nos permite visibilidade de melhores dias para a educação. E é justamente sobre mudanças realizadas no ensino religioso, embora tímidas, que se torna possível relativizar esse otimismo. Esta é a abordagem seguinte.

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