sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Conclusão


A apresentação das ideias aqui refletidas expressa, como não podia deixar de ser, o conhecimento construído durante o período de graduação. Eu já possuía de maneira assistemática e bem desorganizada os fundamentos da proposta que está sendo colocada neste trabalho monográfico. Ao longo da formação como pedagogo, foi-me possível agregar novos conhecimentos e observar toda a engrenagem de sustentação de um Curso que pretende criar condições favoráveis à emancipação dos indivíduos por meio de uma educação de vanguarda. Não sou pretensioso a ponto de admitir que cheguei ao fim da encruzilhada; apenas cumpri uma etapa que me permitiu, no nível de graduação, elaborar um trabalho que resultou do enriquecimento que me foi proporcionado ao longo desses quase cinco anos de aprendizagem. Por isso mesmo, cumpre-me enfrentar novos desafios, pois não há como interromper uma caminhada que, parece, não possui ponto de chegada previamente definido.

Quando admito que já possuía uma base desorganizada para os fundamentos de meu objeto, é porque, antes de ingressar na FEUFF, eu já vivia a fase de superação da inquietude e ingressava no terreno do desconhecido e da perplexidade. Depois de passar longos anos desatando os nós que me aprisionaram desde a infância, vi-me, de repente, completamente solto e livre das amarras, mas surpreendido por saber que nem todos encontram os caminhos para a libertação do jugo alienatório. Considerei-me privilegiado em ter refletido a respeito dos labirintos da vida e ter saído incólume depois de longo tempo. Muitas setas nessa estrada apontaram o caminho da reflexão. Estava eu tranquilamente curtindo minha trajetória em direção ao céu, quando, de repente, algo sinalizava para o retorno. As setas eram detalhes (agora sei), sinais particulares, segundo Carlo Ginzburg (1989, p.143-179), autor que se vale de um modelo epistemológico que ele mesmo denomina “paradigma indiciário”, ferramenta que permite ao observador teoricamente sensibilizado desvelar o conhecimento subjacente, negligenciado por outros e consubstanciado em indícios. Através destes, fiz uma reviravolta na minha cabeça, parei de usar chapéu. Precisava, contudo, de algo mais esclarecedor, mais sistematizado, que me permitisse ampliar minha visibilidade a respeito dessa imensa complexidade que é o ser humano. Foi, então, que minha ex-companheira de sugeriu-me o Curso de Pedagogia da UFF, do qual ela já possuía graduação. Disse-me ela que ali se encontrava o espaço privilegiado para as discussões que envolvem princípios da formação humana. Por isso mesmo, cumpri a jornada do Vestibular de 1999 e cá estou concluindo este primeiro percurso.

Foi necessário que eu fizesse esse comentário preliminar, para depois justificar a elaboração deste trabalho. Na sua introdução, expliquei que se tratava de um desafio. E agora concluo que os conhecimentos construídos a partir do primeiro período fizeram-me compreender que as dificuldades para contornar os obstáculos de uma educação transformadora são bem maiores do que eu imaginava. Durante a graduação, pude conviver num ambiente discente que abrigava algumas pessoas, a maioria, que expunham as mesmas feridas que me preocupava vê-las curadas. Em vão, quantas vezes, procurei mostrar a alguns colegas que a vida é uma revisão constante, mas ouvia perplexo que certos valores não podem ser mudados, porque eles explicam a própria vida. Não raro, ouvia depoimentos em que o êxtase espiritual esteve presente, correspondente a uma intervenção divina. E, de repente, faço um retrospecto de minha vida e redescubro que quando tinha a idade de meus e minhas colegas de agora(a maioria), eu era igualmente um adepto dos mesmos princípios. Mais adiante, compreendo também que levei muito tempo examinando a legitimidade, ou ilegitimidade, de tudo que para mim se havia transformado em valor. Mas, no momento que me dispunha a examinar os valores que incorporei de minha circunscrição cultural, tornava-me uma exceção da inexpugnabilidade diagnosticada por Freud(2001, p. 74-75) e assumia a atitude filosófica preconizada por Chauí(1999, p.11-12). A vida, depois de me trair, abriu-me as portas para reencontrá-la autêntica e sem ilusões. Desde que consegui reinterpretar os valores adquiridos na infância, tornou-se para mim uma obsessão a discussão sobre essas idéias, buscando, sempre que possível, sugerir às outras pessoas que façam o mesmo exercício reflexivo.

A reflexão permite identificar no fato religioso uma dualidade inquestionável: há a religião dos teólogos, dos doutores da igreja, fundamentada em princípios filosóficos milenares e sempre atualizados. Conquanto não aceite tais fundamentos, compreendo que eles são resultado do envolvimento humano com as questões da vida, pois também ali se encontra uma reflexão sobre os mistérios do mundo e, por conseguinte, uma escolha. Há, porém, a outra religião, a das massas, a do rebanho, a que é incorporada pelos fiéis sem qualquer avaliação e que, pelo próprio fato, adquire dimensão de prática supersticiosa. Se o fiel recebe a incumbência de orar, sem conhecer o sentido epistemológico da oração; se lhe condicionam a acreditar na existência de milagres, sem que lhe convençam plenamente de sua possibilidade; se o fazem admitir que a revelação divina está contida nos livros sagrados, mas não o informam de que forma eles foram sacralizados, fizeram dele, sem dúvida, um autômato, uma figura robotizada, um supersticioso. A religião da massa é fruto da manipulação que os teóricos das igrejas empregam para manter viva a chama da mensagem que eles defendem. Como a educação religiosa de ponta é inacessível à grande massa, a solução é impregná-la de princípios de fácil assimilação e administração, os quais trazem a recompensa de graças, bênçãos e, a maior de todas, a vida eterna. Não importa que os fiéis ignorem os princípios doutrinários, mas importa que obedeçam à Igreja. Não se pode perder de vista o sentimento de culpa, através do pecado, fator decisivo para manter sobre controle a comunidade de fiéis; o pecado carece de arrependimento e somente este é capaz de reaproximar o pecador de Deus. Não se pode perder de vista, também, que as igrejas disputam acirradamente a conquista dos féis, buscando uma posição hegemônica em todos os espaços sociais.

Ainda como instrumento de controle e ajuste da civilização, o cristianismo determina a seus fiéis, em tom imperativo, que eles devem amar-se uns aos outros, como se possível fosse viver o amor por decreto. A compreensão desse mandamento só se efetiva quando o fiel comprometido com o dogmatismo religioso admite ser capaz de amar igualmente todos os seus semelhantes como a si mesmo. Qualquer exame simples da realidade humana entende que se trata de uma grande fantasia. O homem é frágil, sua dimensão como ente-espécie é que lhe permite subsistir e perpetuar a própria espécie, mas sua inconclusão ainda o impede de alcançar a plenitude espiritual do amor. Somente em condições amplamente favoráveis, talvez pela primazia do intelecto prognosticada por Freud (2001, p. 83), o ser humano poderia alcançar um estágio ideal para aquela utopia religiosa, ressalvando-se que o alcance de tal primazia representaria, sem dúvida, a desnecessidade da religião. Na realidade, o homem ama apenas as pessoas com as quais criou uma interação afetiva, por força de relações consangüíneas ou de acidentais aproximações; com as demais, ele pode manter vínculos estreitos, respeitosos, solidários, generosos, de amizade, mas sem a intensidade do amor sugerido pelo mandamento. Relativamente às pessoas incluídas nas acidentais aproximações, o ser humano idealiza, dentro de determinadas condições, aquele ou aquela que pode ser amado (a) e somente o cumprimento dos pressupostos idealizados lhe abre as portas para a satisfação do sentimento correspondente ao amor. Trata-se, pois, de algo condicionado, de algo que atenda às elaborações afetivas do humano.

Pior de tudo é quando esse mandamento não repercute nas massas conforme esperado e o seu destino acaba sendo o aproveitamento utilitário, um investimento na esfera "espiritual". Não é verdade que grande parcela da massa de fiéis contribui para as instituições de caridade ou distribui esmolas aos dependentes da mendicância? Pois bem. Tal prática tem como escopo uma relação com Deus, visando a obtenção de bênçãos e, após a morte, a salvação da alma. A degeneração do mandamento do amor ao próximo faz com que desvalidos, pobres e miseráveis sejam utilizados como degraus por aqueles que, excitados pela mensagem, desejam alcançar os céus, além de receber em vida as graças terrestres. Quando há contribuições, ouve-se freqüentemente dos "piedosos": quem dá aos pobres empresta a Deuseu fiz a minha parte e é dando que se recebe, esta última uma flagrante deturpação da oração de Francisco de Assis. Creio não estar falando nenhuma novidade.

Além das práticas “compassivas” dos fiéis que pretendem a vida eterna, vale registrar a atuação das igrejas no campo social. Embora passe despercebida por grande parte dos críticos e estudiosos das religiões, a ação das igrejas no combate à pobreza e à miséria fortalece bastante seu propósito de conquistar fiéis e manter o contingente já evangelizado, compensando, destarte, a fragilidade da argumentação que se sustenta no texto bíblico e na apologética. Em outras palavras, o trabalho social é o grande instrumento de aproximação aos fiéis, pois atua em duas pontas: a primeira seduz aqueles que são assistidos em suas necessidades imediatas (pobres, miseráveis e desvalidos), configurando-se assim, para eles, a presença de Deus em momento difícil; a segunda arregimenta pessoas que prestam serviços aos necessitados, por orientação dirigida pela respectiva igreja, e vislumbram alcançar graças e a vida eterna. Nesse particular, a Igreja Católica, no Brasil, conta com a coordenação ativa e eficiente da CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, instituição que atua também no campo político, exigindo das autoridades constituídas o cumprimento de ações que venham a corresponder aos anseios das classes menos favorecidas. Ao mesmo tempo, diversas ações pastorais são desenvolvidas, realimentando entre as categorias assistidas o conceito sobrenatural já existente da presença de Deus. A nova investida, conhecida como “ opção preferencial pelos pobres” (CELAM de Puebla, 1979, convertida para opção pelos pobres, na CELAM de Aparecida, 2007), substitui a antiga aliança da cúpula da Igreja com os poderosos monarcas dos tempos idos e funciona como estratégia de sobrevivência de um credo cuja fragilidade teórica (ou teológica) não se sustenta à luz de qualquer investigação mais rigorosa. A partir do momento que os estados modernos decretaram sua separação da Igreja, esta soube buscar instrumentos de persuasão e convencimento que lhe permitissem manter aberto o acesso às massas, substituindo a força inquisitorial por formas inteligentes de evangelização. Embora essa pretensa metamorfose aponte para a manutenção de uma postura hegemônica, permito-me conjeturar que à medida que as nações compatibilizem a condição social de seus povos com níveis superiores de conhecimento, erradicando a miséria, a pobreza e a educação precária, o caminho natural das religiões será o registro histórico, quiçá em literatura semelhante à mitológica.

Concomitantemente às estratégias de sobrevivência da Igreja, não há dúvidas quanto à existência de fortes fatores psicológicos, compreendidos na psicologia de massa, para explicar a homogeneidade dos comportamentos decorrentes da catequese. Um deles diz respeito à necessidade de o ser humano pensar e agir coletivamente. O coletivo permite que ele seja um elo de uma corrente, que a constitua enquanto membro, e por ela se sinta amparado. Em contrapartida, o indivíduo deve contribuir para que o seu grupo social seja harmônico, homogêneo, obedecendo rigorosa e obsequiosamente às normas do ambiente cultural. Configura-se a servidão voluntária, a cumplicidade ingênua, e esta se assemelha ao que está contido nos diagnósticos de Chauí (1999, p. 340) e Dürkheim(RODRIGUES, J.A , 1995, p. 46-47); percebe-se também que a atrofia intelectual do adulto, citada por Freud(2001, p.74-75), indica que seu percurso tem início a partir do ingresso da criança na educação religiosa. Como conseqüência, a atrofia intelectual estabelece as condições para a capitulação do adulto e, desta, para a servidão voluntária. Quando afirmo que os caminhos emancipadores da educação passam pelo exame das questões levantadas por autores citados neste trabalho, aproveito a oportunidade para afirmar que algumas escolas já adotam a filosofia como alternativa para a religiosidade das crianças, em medida compatível com o conhecimento já construído.

Falei acima de um excelente instrumento teórico-metodológico de apuração do conhecimento, qual seja o paradigma indiciário de Ginzburg, cujo conteúdo é discutido durante nossa formação acadêmica. Todos nós, sem exceção, todos nós, espécie humana, temos à disposição indícios ou sinais particulares em diversas situações e atividades. Muitas vezes nos valemos desses indícios para expandir nosso conhecimento. Tais sinais também se nos apresentam nas coisas da religião, quando algo nos sugere sinais de contradição ou incompatibilidade com a doutrina. Qual é a reação de quem está fortemente contagiado pelo receituário sobrenatural? Ignorar, subestimar a validade daquele indício e desprezá-lo por inteiro. Mas se a reação for outra? Caberia a cada um interrogar-se a respeito dos conhecimentos que tem a respeito da religião que professa. Por exemplo: a) minha crença resulta de minha livre escolha ou de uma imposição de meus ascendentes? b) acredito eu de fato, rigorosamente, que os milagres existem ou os aceito porque o contexto religioso em que vivo fez-me vê-los como possíveis e reais? c) creio na revelação divina como resultado de uma reflexão ou porque a repetida informação de sua validade me convenceu de que Deus se utilizou desse instrumento para transmitir sua palavra? d) sou verdadeiro quando afirmo que a oração tem poder ou sou vulnerável, por conveniência, porque nela acreditando explico a mim mesmo o recebimento de graças e bênçãos? e) minha fé foi uma escolha amadurecida ou fruto da catequese/evangelização na infância? f) as religiões esperam que os indivíduos atinjam desenvolvimento cognitivo suficiente para o entendimento das respectivas doutrinas ou preferem estrategicamente evangelizá-los nos períodos ingênuos da infância e da adolescência, com o beneplácito de suas já cooptadas famílias? g) o pátrio poder permite aos pais situar seus filhos, na infância, em determinado contexto religioso ou cabe aos mesmos filhos a prerrogativa de conceber o mundo, subjetivamente, em estágio mais amadurecido da vida? Estas perguntas, caso respondidas com critério e destemida isenção, constituem um desafio para quem busca conhecer por si, inadmitindo o conhecimento pronto e sem o mínimo de comprovação lógica; é a atitude de quem pretende transpor os grilhões do senso comum e reencontrar-se com o período de liberdade, curiosidade aguçada, alegria e espontaneidade, subtraído na infância.

Não vejo por que duvidar da montagem dos cursos de pedagogia. Em nossa Universidade e em outros espaços acadêmicos, a teorização do conhecimento pedagógico alternativo é assimilada pelos educandos. Durante o curso, os trabalhos apresentados ou desenvolvidos revelam renovação do pensamento e provável elevação do potencial crítico do alunado. Nessa perspectiva, teria o Curso cumprido seus objetivos, pois os testes de avaliação demonstram que os graduandos ousam investigar-se, propõem a si um inventário de seus clichês culturais. Todavia, a riqueza dos saberes que são construídos nesses espaços perde no confronto com os fortemente arraigados estereótipos sócio-culturais dos novos pedagogos. Configura-se, então, um conflito irreparável: teoria e prática não se conciliam, não caminham juntas. Por outro lado, o educador não identifica em si esse desencontro. O fenômeno não é localizado, é geral, e perpassa todo o universo pedagógico brasileiro, justamente aquele que está encarregado de promover uma revolução na educação, de transformá-la na direção do homem emancipado e de uma sociedade mais justa. Por isso, é necessário que os educadores integrados à religião do senso comum evoluam de tal modo para a criticidade até o ponto que os faça compreender que sua crença em nada difere dos exercícios de adivinhação, como, por exemplo, astrologia, quiromancia, cartomancia, vidência etc. Para os adeptos do espiritismo, não basta aceitar incondicionalmente seus princípios, afirmando, de modo inseguro, ter provas irrefutáveis acerca da mística mediúnica e demais postulados kardecistas; cumpre-lhes verificar, sem medo do desamparo, a partir dos indícios de contradição que a doutrina apresenta e decidir somente após o exercício dialético ora sugerido. Uma vez que o indivíduo, não só o educador, se vale de instrumentos subjetivos de avaliação da realidade e descobre que seus princípios não são exatamente seus, multiplica-se nele o potencial criativo, tornando-o capaz de anular todas as inibições oriundas das concepções mágicas ou maravilhosas da vida. Por conseguinte, novas estratégias precisam ser articuladas, no sentido de fazer o profissional de educação crítico e identificado com a realidade. Permito-me afirmar que uma visão clara e refletida da questão religiosa, pelos educadores, em muito contribuirá para que a tão decantada práxis educativa seja o resultado de uma nova relação teórico-prática de todos os espaços educativos, principalmente o escolar.

Justamente por acreditar que é possível a transformação, transcrevo abaixo mais um fragmento do livro O Futuro de uma Ilusão, de Freud, posto que seu conteúdo me faculta encerrar este trabalho com uma mensagem de otimismo e coincidente com os propósitos manifestados, como segue:

“ Gerações novas, que forem educadas com bondade, ensinadas a ter uma opinião elevada da razão, e que experimentarem os benefícios da civilização numa idade precoce, terão atitude diferente para com ela. Senti-la-ão como posse sua e estarão prontas, em seu benefício, a efetuar os sacrifícios referentes ao trabalho e à satisfação instintual que forem necessários para sua preservação. Estarão aptas a fazê-lo sem coerção e pouco diferirão de seus líderes. Se até agora nenhuma cultura produziu massas humanas de tal qualidade, isso se deve ao fato de nenhuma cultura haver ainda imaginado regulamentos que assim influenciem os homens, particularmente a partir da infância”. (FREUD, 2001, p.14)

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