sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A experiência pessoal


Minha experiência não difere da vivida pelos outros mortais. Não sendo exatamente igual, é assemelhada. É pacífico, como princípio, que todos nós vivemos sob o mesmo teto cultural e assimilamos, desde a infância, hábitos, costumes e toda sorte de ensinamentos, sem dar conta de que a engrenagem social está cooptando-nos silenciosamente e roubando-nos o direito de examinar, em estágio mais amadurecido da vida, toda a complexidade que cada um de nós experimenta como ser vivo, como ser pensante, como portador de um valioso instrumento chamado intelecto. É assim mesmo. Não damos conta que observamos incondicionalmente regras e deveres, para que não estejamos sujeitos às sanções previstas em códigos não muito bem elucidados. Nosso aprendizado é o da reprodução e da obediência.

Sem maiores delongas para todos os aspectos inerentes à organização da sociedade, aos quais os indivíduos quase que invariavelmente se submetem, procurarei ater-me especificamente ao ligado à crença religiosa, consoante propus ao início deste trabalho. Tal enfoque se prende fundamentalmente ao juízo que faço da vida espiritual conduzida pelos credos religiosos e à catequese cooptativa exercida pela igreja dominante na cultura brasileira, a católica romana. Todavia, sempre que necessário, buscarei em outras vertentes, religiosas e afins, a elucidação e suporte para os pontos de vista que defendo.

Meu ingresso na vida religiosa aconteceu na condição de fiel, como membro leigo, a exemplo de tantos outros. Também como tantos outros, meus primeiros passos nessa direção surgiram da família, instituição que adquiriu a responsabilidade inalienável de conduzir os filhos para os caminhos da chamada imprescindível educação religiosa. Em certos círculos, diga-se de passagem, é voz comum dizer que "toda pessoa precisa de uma religião". Entre oito e dez anos de idade, inicia-se a construção de um conhecimento para o resto da vida. A presença do sobrenatural é incutida em nossa consciência como valor indiscutível e superior. Nessa faixa etária, não há suporte cognitivo bastante para contestar o ensinamento recebido; inexistem, também, condições favoráveis à abstração e pensamento lógico. Conseqüentemente, o conhecimento religioso inicial é constituído de um repertório de ensinamentos que tem o poder de impor à criança o valor sobrenatural da vida, ao tempo que lhe mostra os instrumentos utilizados na fé, como oração, participação em ritos religiosos, obediência às recomendações clericais etc. Conforme dito anteriormente, tais informações são conduzidas de forma coercitiva, visto que as condições socioculturais (sociedade, família, escola) facilitam a coerção, além de contarem com ingredientes sedutores, tais como vida eterna e recebimento de graças e bênçãos.

À medida que tais ensinamentos vão acumulando-se, seus efeitos adquirem as proporções desejadas pelo proselitismo religioso. A observância rigorosa aos mandamentos da lei de Deus e da igreja, o aprendizado dos deveres condizentes à boa conduta do fiel, a memorização das orações, tudo isso se incorpora àqueles que são compelidos a exercer um compromisso para o qual não estão preparados, posto que não possuem ainda suporte cognitivo suficiente para examinar o conteúdo dos ensinamentos. Nessa seqüência de acontecimentos, eu iniciava uma longa jornada, sem que me apercebesse que ali se introduzia a abdicação do pensamento, que estava admitindo que minha vida fosse balizada por um poder que me era estranho, porquanto não tinha como validar a sua pertinência, mas obedecer sem reservas. Mais ainda, partícipe de um processo de alienação, não me era possível detectar o grau de cooptação e seus reflexos no processo de reprodução; significa dizer que não atentava que mais tarde sentir-me-ia na obrigação de conduzir meus filhos pelo mesmo caminho, isto é, eu os incluiria numa ordem do pensamento sem lhes pedir consentimento.

Mas eu não caminho só, faço parte de um todo e com todos compartilho a trajetória. Uma vez cooptados, não fazemos oposição. Por isso, o tempo se encarrega de nos tornar cada vez mais submissos àquelas determinações, até porque já acreditamos na vida espiritual resultante do processo de catequese. Sem qualquer discussão, admitimos e introjetamos conceitos que se consubstanciam na revelação divina, acreditamos sem questionar no poder da oração, invocamos a proteção de um ser intermediário entre nós e Deus, chamado santo, e concordamos com a existência de fenômenos sobrenaturais, conhecidos como milagres. O ponto culminante da passividade é a assunção do sentimento de culpa, que se torna mais substantivo pelo atributo de pecado. A inculcação da culpa é o momento crucial, psicológico, para a cooptação, pois os credos religiosos, conscientes da fragilidade humana, utilizam-na como principal ferramenta para a permanência do fiel em suas hostes. Quanto mais consegue a catequese confundir o pretenso erro com o pecado, mais o homem se sente culpado e cuida de sua remissão; para se redimir, submete-se à orientação da autoridade eclesiástica e consolida sua condição de submisso, de homem-rebanho. Pior de tudo é que a culpa se incorpora à maneira de ser do indivíduo, passa a fazer parte de sua identidade, mesmo em assuntos extra-religiosos. Agregar o sentimento de culpa a seu conjunto de valores faz do cooptado um ser contido, homem-rebanho, um ser neutralizado, sem iniciativa, sem descoberta; ele se assemelha à figura do homem medíocre identificado por José Ingenieros na introdução deste trabalho. Para melhor compreensão, reiteramos que tudo se processa de forma objetiva, ou seja, sem a presença do sujeito do conhecimento, obviamente. São condicionamentos exercidos diuturnamente sobre o indivíduo, que deles não se apercebe, posto que eles fazem parte de práticas já consolidadas e aceitas em seu grupo social. Significa dizer que, numa sociedade determinada, os grupos sociais têm como instrumento regulador de suas relações um credo religioso. Integrar-se a ele define a adesão do indivíduo ao grupo social e sua submissão a parâmetros culturais previamente definidos. A religião, então, com o peso da instrumentalização sobrenatural de que é portadora, exerce sobre os indivíduos o papel de balizadora de conduta; funciona como uma força uniformizadora do comportamento, sem que as relações de poder (subjacentes, por sinal) sejam identificadas pelos membros que compõem o grupo social.

O processo de cooptação não se extingue com a adesão do fiel a toda sorte de obrigações e à aceitação incondicional da doutrina. Há os caminhos que celebram seu ingresso na comunidade de fiéis, que o incorporam ao coletivo chamado rebanho de Deus; é necessário, porém, mantê-lo. Por isso, os passos do cooptado são acompanhados, e os sacramentos garantem sua presença no rebanho, aumentando seu compromisso com a fé. O batismo do recém-nascido, as cerimônias de crisma (sacramento de confirmação), primeira comunhão e casamento fazem parte do roteiro para que o fiel esteja em permanente contato com a sua igreja. A confissão dos pecados é também um compromisso de consciência, pois ela é reaproximação com Deus e condicionante para que o fiel receba o sacramento da comunhão. Embora a confissão não seja prática de outras vertentes do cristianismo, nem por isso elas deixam de aplicar recursos doutrinários assemelhados, que pretendem, em última análise, manter o controle sobre os adeptos, induzindo-os a acreditar que vivem em pecado e, por isso, precisam redimir-se.

Cumprimos todos essa trajetória e incorporamo-nos à vida religiosa. Não nos furtamos aos convites para participar dos movimentos promotores da fé que funcionam nas paróquias, como, por exemplo, o Encontro de Casais com Cristo (ECC) e o Encontro de Adolescentes com Cristo (EAC), que buscam reforçar a evangelização dos participantes e, numa etapa seguinte, prepará-los para os trabalhos assistenciais e maior aproximação com as comunidades onde os princípios cristãos não se encontram suficientemente consolidados.

Eis que, na contramão das expectativas daqueles que controlam o rebanho, algumas pessoas, em número muito reduzido, acompanham o desenvolvimento de todas as ações com espírito crítico, procedem como se ali estivessem para praticar o receituário, mas também examinar sua validade, a sua importância, a sua consistência como ensinamento que servirá de fio condutor para a vida, será balizador da conduta humana. Tais pessoas, com as quais me identifico, são capazes de detectar contradições em algumas afirmações do proselitismo religioso. Mais ainda, constatado o desencontro, sentem-se instadas a levar a investigação adiante, sem a preocupação de que a fé estará abalada e os caminhos da salvação poderão ser interrompidos. É aí que o ser humano se torna o que é, insubordinando-se em relação ao improvável; transfigura-se, atravessando a fronteira que separa o homem-rebanho do homem-sujeito. Mesmo que o primeiro momento não lhe proporcione clareza, este mesmo momento possui um valor inestimável, pois ele representa a ruptura com a passividade e a submissão. Hoje, sei que o questionamento deve ser permanente, assim como admito que há muitas perguntas sem respostas. Não importa que não se alcance a verdade, mas é importante saber que não há mais imposição de conhecimentos com estatuto de verdade. À medida que incorporamos a dúvida coerente ao nosso cotidiano, substituímos o pesado fardo da submissão incondicional pela satisfação de especular a realidade com autonomia, augurando, ademais, que melhor seria que essa rebeldia aumentasse progressivamente o seu número de adeptos. E não seria demais desejar que esse contingente tenha como missão a educação emancipadora e como corolário desta a emancipação dos educadores.

Quando me refiro à dúvida coerente, exijo de mim uma reflexão permanente para as questões que me foram coercitivamente colocadas. O ponto culminante desse emaranhado de preceitos reside na aceitação incondicional da revelação divina. Ela é apresentada como real, indiscutível e sem retoques. Como se trata de ensinamento que conta com a intermediação de instituições religiosas, chamadas igrejas, permiti-me insurgir contra essas afirmativas, refletindo do seguinte modo: se Deus é onipotente, onisciente e onipresente, se Deus considera todas as criaturas igualmente, por que ele se revelaria a apenas alguns e faria com que os demais observassem passivamente os preceitos ditados pela minoria instalada no poder eclesiástico? É o mesmo que perguntar: se os atributos da onipresença, da onipotência e da onisciência são suficientes para que Deus conviva harmonicamente com suas criaturas, por que transferir essa incumbência a uma instituição chamada igreja? Parece-me um inconfundível contra-senso. Da mesma forma, como pode um ser, dito perfeito, criar seres imperfeitos e exigir que estes lhe dirijam orações e irrestrita obediência, como reconhecimento à sua superioridade divina? Obviamente, algumas explicações sobre as concessões divinas são justificadas pelas igrejas, mas estão muito longe da consistência lógica. Mas, nesse embate, a fé é consagrada em sua transcendência, onde os limites da razão são ultrapassados, ou seja, os pregadores da fé admitem ter acesso à mencionada transcendência, assim como se apresentam com representantes de Deus aqui na terra. Nesse particular, os fiéis se regozijam, pois as explicações sobre a ingerência do sobrenatural em suas vidas adquirem magnitude, pois revelam uma nova dimensão da existência e desvendam os mistérios da vida. Não se pode, todavia, aceitar pacificamente essa interpretação, pois a compreensão de toda a complexidade metafísica que se propõe passa inevitavelmente por um canal do entendimento humano chamado razão, e esta nada mais é que uma expressão de seu aparelho psíquico. Com esse propósito e rara felicidade, Sigmund Freud recorre à sintonia existente entre o psiquismo humano e o desenvolvimento transformador da ciência, para esclarecer de que forma pode e deve ser interpretada a realidade, a saber:

Em primeiro lugar, nossa organização – isto é, nosso aparelho psíquico – desenvolveu-se precisamente no esforço de explorar o mundo externo, e, portanto, teria de ter concebido em sua estrutura um certo grau de utilitarismo; em segundo lugar, ela própria é parte do mundo que nos dispusemos a investigar e admite prontamente tal investigação; em terceiro, a tarefa da ciência ficará plenamente abrangida se a limitarmos a demonstrar como o mundo nos deve aparecer em conseqüência do caráter específico de nossa organização; em quarto, as descobertas supremas da ciência, precisamente por causa do modo pelo qual foram alcançadas, são determinadas não apenas por nossa organização, mas pelas coisas que influenciaram essa organização; finalmente, o problema da natureza do mundo sem levar em conta nosso aparelho psíquico perceptivo não passa de uma abstração vazia, despida de interesse prático.
Não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que, aquilo que a ciência não nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar. (FREUD, 2001, p.87)

A explicação freudiana deriva, obviamente, de sua pesquisa em torno do psiquismo e das possibilidades do desenvolvimento do intelecto. As assertivas da citação acima estão contextualizadas no seu propósito de negar às religiões o privilégio de explicar o mundo, como também servem para manifestar sua esperança de que a primazia do intelecto será alcançada, “num futuro infinitamente distante”. Enquanto distantes da situação real deste maravilhoso prenúncio, nada mais resta que examinar como se formam as relações sociais e como o conhecimento se processa, qual seu percurso nas interações do indivíduo com a sociedade.

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