sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

O conhecimento socialmente produzido


Seria de se perguntar como acontece, como se produz o conhecimento dentro dos grupos sociais e, ao mesmo tempo, como reage cada indivíduo ao conjunto de informações que lhe é sugerido ou imposto pelo seu ambiente sociocultural. Afinal, cada um de nós está presente em uma circunscrição onde pessoas compartilham hábitos, costumes, utilizam-se da mesma língua e trocam experiências. Trata-se de práticas sociais previamente codificadas, preexistentes ao ingresso do indivíduo em determinado grupo social, mas que ele assimila sem dar conta do poder coercitivo de que elas são portadoras.

Creio ser válido retomar um dos objetivos curriculares de nossa graduação em Pedagogia. É pacífico que a proposta de um educador engajado na construção do ser humano individual/coletivo, numa perspectiva de educação transformadora, envolve percepção e domínio do que seja individual e do que seja coletivo. Não obstante essa preocupação esteja voltada para a crítica do educador como sujeito do conhecimento e da prática educativa, procurarei analisar o binômio individual/coletivo num contexto mais abrangente, até porque entendo que o presente enfoque se aplica também às demais esferas da atividade humana.

Admitamos que o indivíduo seja consciente de sua unicidade como pessoa e de sua inserção no ambiente social. Ele deve reconhecer-se com pleno direito ao exercício de sua individualidade, assim como identificar no outro igual prerrogativa inerente à subjetividade. O sujeito pleno exibe autonomia intelectiva, não permite que seus valores sejam modificados sem suficiente exame crítico. Nessa ordem, ele se sente à vontade para indagar sobre sua origem, investigar sobre a realidade que o cerca, pesquisar sobre o que o aguarda, discutir sobre vida ou morte, sem observar passiva e obsequiosamente fórmulas tradicionalmente consagradas; ele se permite, outrossim, contestar as afirmações existentes que não sejam evidentes por si mesmas, mas que adquiriram estatuto de verdade pelo uso e pela repetição. Suas avaliações têm sempre o crivo da reflexão.

Pressupondo que o aspecto relativo à individualidade esteja preliminarmente identificado, a investigação se volta para o coletivo. Este é o terreno onde os indivíduos se reúnem, se reconhecem e somam esforços; aqui se estabelecem relações éticas, morais, de solidariedade, de desavença, de desunião, de guerra, de apoio, de mútua sustentação; é igualmente o espaço onde são cultivados os hábitos e costumes de uma sociedade, onde nascem, frutificam e se transformam suas crenças e valores. É imprescindível que o indivíduo se reconheça integrante do grupo social e se identifique com os demais membros desse coletivo, onde direitos e deveres são os responsáveis pelo equilíbrio e harmonia entre todos.

É necessário ter presente que o exame dessa matéria leva em conta o ser humano tal qual ele é, relativamente a sua vulnerabilidade, seu inacabamento, sua fragilidade, sua suscetibilidade aos procedimentos de origem emocional. Tal instabilidade decorre de sua inconclusão como ente-espécie e explica sua fragilidade. Ênfase especial é dada à capacidade de o ser humano deixar-se submeter sempre que lhe acenam com alguma coisa que venha a beneficiá-lo, mesmo que estejam fora de seu alcance a consistência e a legitimidade dos pretensos benefícios. Não podemos esquecer, entretanto, que o ser humano tem a seu favor a trajetória da vida, os permanentes avanços e transformações que o transportam a um novo estágio de conhecimento. Se, outrora, acreditávamos em deuses mitológicos, bruxaria e peste como punição divina; se há aproximadamente trezentos anos a contestação à palavra da Igreja representaria julgamento inquisitorial e morte, temos que considerar que vivemos como sujeitos históricos momentos de superação em relação àqueles. Nada impede o ser humano de examinar profundamente sua identidade ontológica ou de buscar um viés crítico para sintonizar-se com a realidade. É necessária, ainda, a compreensão de que todos os seres humanos possuem a característica inata de ser igual e potencialmente inteligentes, conforme estudos e pesquisas no âmbito da sociobiologia, conquanto há que se reconhecer que os influxos culturais são responsáveis pelas inibições intelectuais dos homens e, em conseqüência, pela sua incapacidade de superar a força coercitiva dos conhecimentos oriundos de seus grupos sociais.

Nesse momento, é lícito que o indivíduo investigue a quantas anda sua subjetividade, ou seja, que ele apure até que ponto seus conhecimentos, procedimentos e preferências derivam de sua escolha ou foram adquiridos do ambiente cultural. Obviamente, essa investigação de caráter puramente pessoal não se processa num passe de mágica, mas exige que cada um seja capaz de examinar criticamente suas contradições e as coloque na arena mais apropriada para a solução dos conflitos: a reflexão. Esta nada mais é que o campo da isenção, da imparcialidade, do rigor e da exaustão do pensamento. Se os procedimentos não atenderem a esses quesitos, infrutíferos serão os esforços de quem se propõe sujeito de si.

É necessária a compreensão dos caminhos percorridos, desde a infância, para a construção do conhecimento ora ostentado. Recebe-se toda ordem de ensinamentos e todos os dias acrescenta-se algo ao aprendizado. Nesse sentido, cumprindo o rigor e isenção acima sugeridos, convém distinguir o que é inquestionável, ou seja, aquilo que é evidente por si mesmo, e o que carece de demonstração. No primeiro caso, pode-se citar como simples exemplo a exatidão dos cálculos matemáticos, assimilada nas escolas. Ela é universal, é aceita em todos os quadrantes do planeta e ninguém questiona sua validade. No segundo, lembramos os conceitos de ordem política e caráter religioso, os quais recebem diferentes interpretações em diversos países e regiões do mundo. Por isso, nossa análise se prende a esse segundo aspecto, posto que ele foge da unanimidade, é reconhecidamente polêmico e quase sempre contraditório, muito embora tais conceitos tenham predominância em determinados países ou regiões, isto é, sua variabilidade ocorre de acordo com o espaço geográfico. De propósito, o desenvolvimento deste trabalho procura destacar, criticando, os caminhos que levam multidões a abraçar as diversas religiões, os quais se processam sempre, consoante nosso entendimento, pela cooptação via catequese religiosa. Cabe, então, antes de iniciar tal abordagem, analisar os pressupostos que conduzem à organização da vida social, o que facilita a compreensão do aspecto religioso como injunção da mesma vida social.

Em uma sociedade complexa, como a nossa, todos os indivíduos, desde o nascimento, nela se integram e convivem de acordo com regras e códigos, alguns escritos e outros não. Este conjunto de deveres, contudo, não ocorre por livre escolha do ser social, mas por imposição de uma força exterior à sua vontade. No seu dia-a-dia, o indivíduo assimila princípios, deveres, hábitos e costumes, mas tais atributos ocorrem de modo coercitivo, independem de prévio exame ou de qualquer avaliação crítica. A propósito, o fragmento abaixo, de Marilena Chauí, filósofa e escritora, autora de Convite à Filosofia, resume com clareza como nossas atitudes se processam por meio de condicionantes que fogem à nossa percepção:

"Nossos sentimentos, nossas condutas, nossas ações e comportamentos são modelados pelas condições em que vivemos (família, classe e grupo social, escola, religião, trabalho, circunstâncias políticas, etc). Somos formados pelos costumes de nossa sociedade, que nos educa para respeitarmos e reproduzirmos os valores propostos por ela como bons e, portanto, como obrigações e deveres. Dessa maneira, valores e deveres parecem existir por si e em si mesmos, parecem ser naturais e intemporais, fatos ou dados com os quais nos relacionamos desde nosso nascimento: somos recompensados quando os seguimos, punidos quando os transgredimos". (Chauí: 1999, p . 340).

A partir desta síntese, alguns, não todos, se sentem instigados a avaliar até que ponto seu desempenho como ser humano, como indivíduo, deriva de uma apropriação subjetiva ou resulta da assimilação de modelos previamente montados por uma força exterior à sua vontade. É possível, por exemplo, examinar por que praticamos os rigores da etiqueta quando comparecemos a um jantar de confraternização; quando procuramos seguir os lançamentos da moda; quando obedecemos aos ritos prescritos por determinado credo religioso. Conquanto tais procedimentos se operem em esferas distintas da atividade humana, eles se prestam como instrumentos de avaliação de nossa condição de sujeito do conhecimento, isto é, permitem-nos verificar se tais práticas foram por nós previamente criticadas, averiguadas, ou exercitadas por um automatismo incontrolável. Se previamente criticadas, saberemos apurar qual a capacidade para distinguir entre o que se torna necessário para que nossa atuação no campo das relações humanas seja de integração, de harmonia, ou de pura obediência àquilo que se encontra catalogado pela tradição.

Além de Marilena Chauí, outros estudiosos do comportamento humano já haviam realizado trabalhos da mesma natureza e pretendiam, da mesma forma, demonstrar que as escolhas, na maioria dos casos, não ocorrem pela subjetividade individual, mas pela intervenção coercitiva da sociedade. Emile Durkheim, sociólogo e pensador na transição dos séculos XIX e XX, possui trabalho de abordagem de organização da sociedade, chamado "O que é fato social?". Pela importância que ele representa para a presente dissertação, permito-me inserir fragmento desse estudo e, ao mesmo tempo, estabelecer analogia entre a sua análise e a de Chauí. Afirma Durkheim:

"Quando desempenho meus deveres de irmão, de esposo ou de cidadão, quando me desincumbo de encargos que contraí, pratico deveres que estão definidos fora de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Mesmo estando de acordo com sentimentos que me são próprios, sentindo-lhes interiormente a realidade, esta não deixa de ser objetiva: pois não fui eu quem os criou, mas recebi-os através da educação. Contudo, quantas vezes ignoramos o detalhe das obrigações que nos incumbe desempenhar, e precisamos, para sabê-lo, consultar o Código e seus intérpretes autorizados! Assim também o devoto, ao nascer, encontra prontas as crenças e as práticas da vida religiosa; existindo antes dele, é porque existem fora dele(...). Esses tipos de conduta ou de pensamento não são apenas exteriores ao indivíduo, são também dotados de um poder imperativo e coercitivo, em virtude do qual se lhe impõem, quer queira, quer não. Não há dúvida de que esta coerção não se faz sentir, ou é muito pouco sentida, quando com ela me conformo de bom grado, pois então torna-se inútil". (RODRIGUES, J.A. 1995, p. 46-47)

Tais considerações possuem excelente conteúdo crítico para todos aqueles que pretendem avaliar a origem de suas atitudes e de suas escolhas; permitem, também, numa etapa seguinte, identificar quais os conhecimentos adquiridos precisam ser reavaliados, posto que alguns apresentariam sinais de inexatidão ou inconsistência lógica. Uma vez constatadas, subjetivamente, distorções ou fragilidade em determinada área do conhecimento, torna-se necessário investigar criteriosamente suas discrepâncias, evitando, assim, que elas sejam responsáveis por futuros desajustes e conflitos de caráter pessoal. A grande preocupação, nesse sentido, é incentivar a reflexão daqueles que foram algum dia doutrinados por determinado credo religioso; trata-se de sugerir exame consciente do fragmento acima transcrito, no tópico que Durkheim afirma que "o devoto, ao nascer, encontra prontas as crenças e as práticas da vida religiosa". Em seguida, cumpre apurar como tais crenças e práticas repercutem na vida das pessoas, principalmente daquelas que contribuem para a construção do conhecimento, daquelas que acreditam na educação transformadora.

Ao longo deste trabalho monográfico, estará permanentemente implícita a indagação acerca dos critérios de organização da sociedade, ou seja, se os princípios de harmonia, coesão, fraternidade, solidariedade e promoção humana precisam sempre ser administrados de cima para baixo ou surtiriam melhor resultado se todos os indivíduos fossem arregimentados num monumental projeto de participação igualitária e influíssem decisivamente num igualmente monumental projeto de redenção humana. Significa perguntar se o ser humano precisa ser sempre tutelado, dirigido, por instituições como Estado, igreja e organismos internacionais, ou pode organizar-se em uma grande subjetividade coletiva e conduzir seus destinos através dos tempos. Por extensão, indagar-se-á se o indivíduo, quando tutelado ou dirigido por injunções alheias à sua vontade, não estaria sendo molestado ou agredido em seu inato e intrínseco anseio de liberdade e de autonomia. Pessoalmente, considero-me ultrajado, traído pela vida, quando constato que durante muito tempo cultivei princípios que não eram meus e me foram impostos. Conforme experiência narrada quase ao início deste trabalho monográfico, tive que aceitar o que estava pronto, consagrado pela tradição e faltavam em mim condições para avaliar se devia ou não aceitar o que me era apresentado como verdade sagrada. Mesmo as pessoas que me dedicavam amor e se responsabilizavam pela minha educação, também elas, algum dia, foram arrebatadas de sua ingenuidade e envolvidas por esse imenso rolo compressor da civilização, estando, por conseguinte, sem condições de evitar nelas também as conseqüências desse ato invasor da privacidade do pensamento. Pior de tudo é que nunca lhes foi facultada a oportunidade de atentar sobre a validade daquele conjunto de informações.

A propósito, cabe registrar o que foi desenvolvido pela psicanálise no exame dessa matéria. Sigmund Freud, médico austríaco e fundador da psicanálise, resolveu dedicar-se, a partir de 1920 e até 1939, ano de sua morte, aos problemas da civilização, observados dentro de uma perspectiva psicanalítica. Nesse período, ele escreveu um célebre ensaio, intitulado “O Futuro de uma Ilusão”, no qual descreve como se desenvolvem as relações entre as religiões, ênfase especial ao cristianismo, e aqueles que se tornam fiéis e adeptos de diversos credos. No tocante à invasão da privacidade do pensamento, mencionada no parágrafo anterior, Freud faz, nessa obra, um feliz e oportuníssimo diagnóstico, ao revelar como se operam as estratégias de cooptação e preservação dos indivíduos dentro das correntes religiosas, conforme fragmento abaixo:

Pense no deprimente contraste entre a inteligência radiante de uma criança sadia e os débeis poderes intelectuais do adulto médio. Não podemos estar inteiramente certos de que é exatamente a educação religiosa que tem grande parte da culpa por essa relativa atrofia? Penso que seria necessário muito tempo para que uma criança, que não fosse influenciada, começasse a se preocupar com Deus e com as coisas do outro mundo. Talvez seus pensamentos sobre esses assuntos tomassem então os mesmos caminhos que os de seus antepassados. Mas não esperamos por um desenvolvimento desse tipo; introduzimo-la às doutrinas da religião numa idade em que nem está interessada nelas nem é capaz de apreender sua significação. Não é verdade que os dois principais pontos do programa de educação infantil atualmente consistem no retardamento do desenvolvimento sexual e na influência religiosa prematura? Dessa maneira, à época em que o intelecto da criança desperta, as doutrinas da religião já se tornaram inexpugnáveis (o grifo é do autor). (FREUD, 2001, p. 74-75)

Freud faz observação das mais lúcidas, conquanto ela não esteja visível para aqueles que se encontram fortemente contagiados pela doutrinação cristã, quando, no fragmento acima, faz referência à atrofia intelectual provocada pela educação religiosa. Mas como conseguimos diagnosticar, de acordo com os postulados freudianos, uma “inteligência radiante de uma criança sadia?” Creio não haver dificuldades para observadores atentos no campo das ciências humanas, principalmente os que atuam na área da educação infantil, quando se propõe identificar o potencial cognitivo de uma criança. O espírito de observação sempre aguçado, a curiosidade constante, a capacidade criadora espontânea e a vocação ilimitada para as perguntas são atributos incontestáveis do mundo infantil. Freud faz, então, a ponte dessa potencialidade infantil para a debilidade intelectual do adulto e revela que a educação religiosa é a responsável por essa depreciação, por essa atrofia. É necessário compreender como se processa tal metamorfose.

Nós vivemos em sociedade, e os indivíduos participam de grupos sociais, nos quais são diversas as formas de organização. No momento que se organizam, os grupos sociais criam a sua cultura, constituindo-a de hábitos, costumes e crenças. Tais práticas se confundem com o processo civilizatório, entendendo-se que este é o caminho da convivência harmônica, uniforme, dos indivíduos que formam um grupo social e se sentem compelidos a um sistema de convivência pacífico com seus semelhantes. Diga-se de passagem, nessa apreciação, cultura e civilização não se diferenciam e caminham juntas. Delas, entretanto, emergem como força atuante, amparadas pela tradição, as religiões, instituições que avocam a prerrogativa de educar as massas, conduzindo o processo educativo pela via do ensinamento religioso e seus derivados, isto é, as obrigações e os deveres a serem cumpridos. Parece-me que o exame da aludida metamorfose acontece, na criança, justamente quando ela, colhida de surpresa, se vê diante de um emaranhado de conceitos pelos quais jamais se interessara, mas não vê como dele se desvencilhar. E o pior para a criança é que o arcabouço de obrigações que lhe é imposto cria nela uma série de condicionamentos e rouba-lhe a espontaneidade e a naturalidade que até então ela experimentava. A atrofia a que se refere Freud inicia sua dimensão quando a criança, sem questionar, assimila padrões normativos e conceituais avessos à sua vocação para a liberdade e a autonomia. Por mais paradoxal que possa parecer, as pessoas que se encarregam de acompanhar todo o processo de perda de qualidade intelectiva da criança são, involuntariamente, os próprios pais, uma vez que as religiões concentram nas famílias a responsabilidade pela reprodução das idéias religiosas, até porque os membros mais velhos das próprias famílias um dia foram cooptados pelo mesmo processo de reprodução.

Obviamente, quando se propugna pela liberdade e pela autonomia, não se trata de defender a anomia dos grupos sociais e muito menos desaprovar a civilização como instrumento de conformação da sociedade. O que causa espanto, principalmente quando se indica um horizonte de uma educação emancipadora, é admitir determinada formação religiosa como inquestionável e obrigatória, via de mão única, como se estivesse consagrada sua universalidade. É necessário ter clareza, e isso faz parte das propostas pedagógicas atuais, que a criança deve participar das etapas de construção do conhecimento. Nessa ordem, seu desenvolvimento acontece numa perspectiva de interação com o ambiente onde ocorre a aprendizagem, seja na família, na escola e nas demais relações. Caso a criança não tenha atingido, ainda, o estágio que lhe faculte o exame de determinado conhecimento, o bom senso pedagógico recomenda que se adie sua abordagem para o momento oportuno.

A necessidade de preservar a criança de conhecimento incompatível às suas expectativas não é recente. Uma das grandes figuras do Renascimento, o escritor francês Michel Eyquem de MONTAIGNE(1533-1592 já se havia manifestado a respeito. Todo seu pensamento encontra-se em uma única obra, intitulada Ensaios. Nela, há um capítulo dedicado especialmente à formação infantil, denominado Da Educação da Criança, do qual torna-se obrigatório, para ilustração deste trabalho monográfico, destacar o fragmento abaixo:

“Tudo se submeterá ao exame da criança e nada se lhe enfiará na cabeça por simples autoridade e crédito. Que nenhum princípio, de Aristóteles, dos estóicos ou dos epicuristas, seja seu princípio. Apresentem-se-lhe todos em sua diversidade e que ele escolha se puder. E se não o puder fique na dúvida, pois só os loucos têm certeza absoluta em sua opinião (...). Quem segue outrem não segue coisa nenhuma; nem nada encontra, mesmo porque não procura.” (MONTAIGNE: 1987, 4ª ed. P. 77-78).

A interpretação que faço do texto acima permite-me acrescentar uma sugestão. Desde que o ser humano cumpra os estágios de seu desenvolvimento psíquico, desde que ele apreenda conhecimentos suficientes para o exercício do discernimento, isto é, sendo adulto, não haverá obstáculos para que os princípios lhe sejam apresentados, pela primeira vez, todos em sua diversidade e que ele escolha se puder. No tocante à área específica do pensamento religioso, que a ele se submetam os conceitos do catolicismo, do protestantismo, do judaísmo, do kardecismo, do islamismo, do ateísmo e os das vertentes politeístas. Segundo o critério acima estipulado, o indivíduo estaria valendo-se de sua prerrogativa de sujeito do conhecimento, conforme explicitado cristalinamente por Montaigne, e escolheria de modo autônomo, soberano. Eis a questão, o sujeito examinaria a realidade com critérios puramente seus, sem influência de seu ambiente cultural, sem a obrigação de crer nos preceitos de familiares que, por sua vez, jamais tiveram condições psicológicas para examinar de modo autônomo os valores que foram impostos como verdadeiros e sublimes. Ao tempo que sugiro esta reflexão, tenho também em conta a dificuldade que as pessoas cooptadas na infância/adolescência, por qualquer credo, encontram para examinar a validade de suas opções religiosas, pois, como muito bem assinala Freud, elas já se tornaram inexpugnáveis.

É possível identificar nos autores até então citados uma convergência em suas apreciações. Chauí analisa o comportamento humano que recebe influências do meio; sua preocupação é a participação da razão e do conhecimento nas atitudes humanas, em relação ao coletivo. Durkheim procura mostrar, sob o ponto de vista sociológico, a operacionalidade do fato social, revelando que um conjunto de normas e crenças anteriores e exteriores ao indivíduo atua sobre ele e promove de modo coercitivo sua integração a um grupo social. Freud analisa, na citação que lhe coube, como a criança recebe orientação religiosa e faz dela, na idade adulta, um recurso existencial. Montaigne faz uma incursão pelo domínio pedagógico-filosófico e mostra a impropriedade de submeter a criança a um conhecimento cuja compreensão esteja fora de seu alcance, fazendo-nos lembrar o saudoso mestre Paulo Freire. Ademais, parece-me válido compreender a sua observação - “nada se lhe enfiará na cabeça por autoridade ou crédito” - não somente em relação aos autores por ele mencionados, fazendo-a extensiva aos pais que exercem sobre seus filhos autoridade e crédito e, por esta via, obrigam-nos ao ensino religioso.

Com efeito, seria de se perguntar o que leva as pessoas a não inquirir a respeito de matéria que lhe foi apresentada como inquestionável. Se nos reportarmos a Renné Descartes, verificaremos que a dúvida é o melhor método para se alcançar o conhecimento, pois a sua inclusão como instrumento de investigação coloca-nos obrigatoriamente ao encontro da reflexão (Chauí: 1999 p. 93). Pois esta mesma reflexão poderia estabelecer as seguintes dúvidas: qual o fenômeno social explica que os integrantes de uma sociedade sejam adeptos do mesmo credo religioso? A resposta é muito simples, pois a mensagem religiosa é, antes de tudo, um ingrediente cultural e, como tal, é assimilada como parte constitutiva e obrigatória dos costumes de uma sociedade específica. Assim, no Brasil, a tradição cultural faz com que os indivíduos que compõem a sociedade brasileira sejam, em maioria esmagadora, adeptos do cristianismo, pois desde os tempos da colonização a ação das igrejas cristãs criou raízes em nosso território. Na mesma direção, no território israelense, a cultura milenar de mensagens proféticas fez de Israel a pátria do judaísmo, assim como, na maioria dos povos árabes, as profecias reveladas por Maomé ganharam corpo, através dos tempos, e estabeleceram as bases do islamismo. Não fica, então, evidente que a especificidade da fé é uma questão territorial ou geográfica, conforme citação anterior deste trabalho? Não podemos esquecer que as mensagens religiosas, qualquer seja o credo, são crivadas pela sedução, marcadas por atrativos de forte apelo psicológico, que atuam na sensibilidade ingênua e despreparada da maioria das pessoas. Elas explicam a origem da vida, a própria vida e a morte; para tanto, valem-se de linguagem abstrata e transformam-na em conhecimento concreto do senso comum. Neste particular, as igrejas cristãs utilizam como núcleo da doutrina o discurso no qual Jesus anuncia as bem-aventuranças, conhecido como Sermão da Montanha. Na Bíblia, os evangelistas Mateus e Lucas explicitam que as condições indispensáveis à fé são a ignorância, a pobreza de espírito e a renúncia aos bens materiais. Ora, é justamente desses atributos que os credos religiosos sobrevivem, fazendo os fiéis ingênuos imaginarem que "deles será o reino dos céus". Contrariamente ao apregoado no Sermão da Montanha e de modo diferente das práticas do cristianismo primitivo, a cúpula de qualquer igreja é formada de doutores em filosofia e teologia, alguns dos quais detentores de patrimônio e farta conta bancária. O raciocínio contido neste parágrafo pretende mostrar ao leitor atencioso que os indivíduos nascem, crescem e vivem em determinado ambiente cultural e por ele são cooptados, embora admitam, como boa dose de ingenuidade, que suas escolhas são pessoais, refletidas e subjetivas. As doutrinas religiosas, obviamente, fazem parte da cultura e estão incluídas na presente apreciação.

A catequese e demais instrumentos de divulgação do ensino religioso cristão tratam o seu principal documento, a Bíblia, como sagrado. Dentro de nossa cultura, são raras as pessoas que tenham assimilado, na infância, o adjetivo ora referido e realizado um exame a respeito. Perguntar-se-ia: por que sagrado? Quem lhe atribuiu essa respeitosa classificação? Que postulados asseguram ao livro o caráter sagrado? Se houver uma resposta afirmando que o atributo sagrado se justifica porque o livro traz consigo a revelação divina, poder-se-ia indagar qual a área do conhecimento, senão a religiosa, que nos permite inferir que houve realmente intervenção de Deus na elaboração de todos aqueles escritos. Esta é uma questão a ser examinada logo a seguir.

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