sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Conhecimento: possibilidade e credibilidade


No cotidiano, todas as vezes que nos deparamos com uma situação nova, em que o conhecimento a respeito ainda não se encontra sistematizado, ele precisa ser testado à luz da viabilidade, isto é, para que ele seja crível, necessário se torna, antes de tudo, que ele seja possível. Na escola, o aluno constrói seu conhecimento matemático após proceder ao exame de sua factibilidade, de sua probabilidade; as quatro operações, as equações e os teoremas, por exemplo, precisam ser demonstrados, para que sejam aceitos como conhecimento indiscutível, para que tenham credibilidade. Em outras áreas, como a das ciências humanas, há outra forma de investigação, mas que também conduz à credibilidade, pois ela se fundamenta na pesquisa e no aprofundamento de dados quantitativa ou qualitativamente sensíveis ao ser humano. Portanto, o conhecimento é comprovado ou desaprovado pelos meios ao alcance do homem, que se vale de instrumentos sensoriais e de um processador, o intelecto, para cumprir as etapas da investigação.

Essa interpretação sobre o caminho que conduz o ser humano ao conhecimento refere-se à razão. É através dela que se formam os conceitos, se identificam as categorias, se define, enfim, o conhecimento; por extensão, torna-se possível aos humanos perceber o real e até mesmo examinar a possibilidade do irreal, isto é, nada que se presta ao conhecimento definitivo, abalizado, virtualmente comprovado, pode ser alcançado sem o raciocínio, que é o uso da razão ou encadeamento de juízos que leva a uma demonstração racional. Portanto, nós, seres humanos, possuímos um filtro para a realidade vivida, e a realidade de cada um só pode ser validada após percorrer e ultrapassar todos os obstáculos e quesitos estabelecidos pela razão. O percurso ora referido pretende que o conhecimento definitivo sobre algo que se deseja conhecer seja sempre através das faculdades cognitivas do sujeito.

Creio não haver novidade no parágrafo precedente, mas como a preocupação, no caso, é retomar a questão do ensinamento religioso imposto( e posteriormente administrado) à criança, convém aferir qual a capacidade ela possui para, racionalmente, aceitar aquele inesperado, pronto e dogmático conhecimento. Nos primeiros anos de sua evangelização, ela aprende, involuntariamente, que o cristianismo assegura a existência do milagre, da força e do poder da oração, da vida eterna, todos eles estreitamente ligados à revelação divina.. Tratando inicialmente do milagre, sabe-se, por definição, que ele marca um acontecimento sobrenatural, inexplicável pela razão e decorrente de uma ação divina. Dos milagres atribuídos a Jesus Cristo, o da ressuscitação de Lázaro, constante do Evangelho de São João, é indiscutivelmente o mais emblemático. Certamente, as condições criadas para a transmissão desses conhecimentos são amplamente favoráveis à aceitação, pela criança, da veracidade e da inquestionabilidade do ensinamento, porquanto ela ocorre num clima coercitivo, onde despontam a autoridade e o crédito aludidos por Montaigne(1987, p.77-78). Apenas isso. A criança não possui ainda discernimento suficiente para entender por que e como ocorre um milagre, desconhece por que se lhe atribuem origem sobrenatural, mas nele acredita irremediavelmente, transforma-o em princípio. Não seria então, em função dessa incapacidade, mais prudente seguir a recomendação do célebre pensador, qual seja, “apresentem-se-lhe todos em sua diversidade e que ele escolha se puder. E se não o puder fique na dúvida...?”

A apreciação acima exposta procura situar o milagre como um dos instrumentos de cooptação da criança ao credo religioso. Pelos motivos já analisados, ela aceitará como verdadeira a informação, que doravante fará parte de seu acervo místico. Nesse momento, acredito ser necessário chamar a atenção do adulto crédulo, principalmente aquele que se deseja crítico, rigoroso investigador da realidade, capaz de examinar agora o que não foi possível durante a infância ou adolescência, períodos em que as marcas do proselitismo religioso, incluindo milagres, têm mais eficácia. Trata-se de analisar as observações ditadas por David Hume(1711-1776), célebre pensador escocês, as quais, em capítulo específico da obra Investigação Acerca do Entendimento Humano(1999, p.109-128), descrevem os óbices à realização dos milagres. Segundo ele, o milagre é uma violação das leis da natureza. Nessa apreciação, lei da natureza é o fato que se consagra pela sua experiência uniforme, ou seja, ele sempre ocorre nas mesmas circunstâncias e não admite exceções. Pode-se afirmar, sem medo de errar, que um tijolo cairá, caso seja colocado, sem que algo o segure ou ampare, a uma altura de um, dois ou três metros. Nesse caso, identifica-se a força da gravidade, fenômeno natural uniforme e sem contestação. Se, por acaso, alguém passar por um lugar e vir um bloco de cimento flutuando no ar, certamente não irá muito longe em seu propósito de comprovar a veracidade do evento. Tratar-se-ia, no caso, de ilusão de ótica ou de alucinação. Por isso mesmo, à luz do rigor e do compromisso com a concretude, compreende-se por que Hume afirma que as narrativas sobre a existência de milagres partem de quem está enganado ou, então, quer enganar-nos(1999, p.115). É fácil entender o pensamento daquele que está enganado, mas não ousa investigar: simplesmente porque crer para ele transformou-se em necessidade. Fácil também é perceber que, nas mesmas circunstâncias, o adepto do espiritismo acredita que a mediunidade é um acontecimento sobrenatural, ou seja, ele tem necessidade de compreender a ação do médium como a incorporação do espírito de um ser já falecido. Jamais ele submeterá sua crença na mediunidade ao exame de sua possibilidade, pois isso colocaria em risco a sua credibilidade, o que representaria, nessa ordem, não ter chão onde pisar. Há, por exemplo, estudos que afirmam o transe mediúnico como atitude inconsciente, marcada pela conjunção de auto-hipnose e auto-sugestão. Essa combinação ocorre em ambiente adequado ao transe, na presença de outras pessoas, condição necessária para que haja suficiente excitação do psiquismo do médium e, conseqüentemente, a pretensa incorporação do espírito de uma pessoa falecida. Por que, então, o adepto do espiritismo não examina este indicativo contraditório e o confronta com as premissas mediúnicas, para então, com rigor e isenção, estabelecer um juízo ? Explica-se: as crenças no sobrenatural, com seu caráter balsâmico, trazem em si o poder de validar o inválido e provar o improvável, bem como desestimulam a investigação que comprove o contrário.

Como entender, então, o relato miraculoso, principalmente aquele das escrituras ditas sagradas? Como o compreenderá o homem de agora, que busca identificar-se com o real? Será ele capaz de guardar distância do objeto que o fez acreditar, outrora, na veracidade do milagre bíblico, na narrativa da ressurreição de um morto ou da recuperação da visão de uma cego? Qual é seu critério? Será de apuração da realidade, investigando a legitimidade das informações recebidas ou de conformação passiva, haja vista tratar-se de relatos de um documento irretocável, como a Bíblia Sagrada? Como proceder na atualidade, sabendo-se que ainda se respira o ar da sabedoria mágica, que o homem ainda se sente fortemente inclinado a aceitar, mesmo sem procurar entendê-las, as explicações sobre os acontecimentos sobrenaturais? Considerando que o filósofo escocês David Hume, empirista e precursor da psicologia, tenha vivido no século XVIII e examinado profundamente essas indagações, cabe transcrever parte do diagnóstico que ele faz da interpretação do senso comum à ocorrência de milagres, naquela época, e compará-lo com o nosso tempo:

Com que avidez se recebem os relatos miraculosos dos viajantes, suas descrições de monstros marinhos e terrestres, suas narrações de aventuras maravilhosas, de homens e costumes estranhos? Entretanto, se o espírito religioso se liga ao amor do maravilhoso, acaba-se todo o bom senso, e o testemunho humano, nestas circunstâncias, perde todas as suas pretensões de autoridade. O beato pode ser um entusiasta e imagina que vê coisas que são irreais; pode estar ciente de que sua narrativa é falsa e assim mesmo persiste nela com as melhores intenções do mundo, a fim de promover uma causa tão sagrada. Ou mesmo, se esta ilusão não ocorre, a vaidade excitada por uma tentação tão forte nele atua mais poderosamente do que nos outros homens em outras circunstâncias; ademais, o interesse pessoal age com igual força. Seus ouvintes podem não ter, e geralmente não têm, argumentos suficientes para debater seu testemunho; renunciam por princípio a todo senso crítico em relação aos assuntos misteriosos e sublimes; ou, se tivessem grande desejo em empregá-lo, a paixão e uma imaginação ardentes perturbariam a regularidade de suas operações. Sua credulidade aumenta sua imprudência e sua imprudência subjuga sua credulidade.
A eloqüência, no seu mais alto grau, sobrepuja a razão e a reflexão; mas como ela se dirige inteiramente à fantasia ou aos afetos, cativa os ouvintes condescendentes e subjuga seu entendimento.” (HUME: 1999, p.116-117).

Através dos tempos, é possível desmistificar cada vez mais os fenômenos aos quais se confere o atributo de milagre. Basta que o conhecimento humano ganhe amplitude e o que se compreende inicialmente como maravilhoso se transforme em acontecimento perfeitamente explicável e natural. Não obstante, o milagre tem sido um ingrediente imprescindível no arcabouço metafísico que é destinado a fazer a cabeça dos fiéis; ele possui um valor estratégico muito precioso na divulgação da doutrina cristã, pois funciona como um dos instrumentos da revelação divina. Para que a verdade religiosa tenha repercussão inexorável junto ao rebanho carente de explicações racionais sobre a existência, é necessário que ela seja desvelada de modo impactante, superior e irrefutável, e isso só pode ocorrer pela via do sobrenatural. Significa que a carência referida decorre da insuficiência humana, de seu inacabamento e de sua incapacidade em desvelar sua origem, sua existência e a finalidade da vida. O modo impactante, então, pelo viés sobrenatural, soluciona os questionamentos daqueles que não ousam investigar. A aceitação das assertivas religiosas acontece, por conseqüência, por necessidade dos cooptados e não por vontade. A vontade implicaria exame rigoroso de todos os ensinamentos, aí incluído o que revela a possibilidade dos milagres. Da mesma forma, as religiões convencem seus fiéis sobre o poder da oração. Acreditando mais uma vez em um poderoso instrumento de acesso ao poder divino, também por necessidade, a massa de fiéis cria uma maneira peculiar para justificar a oração e, por necessidade, elabora interpretações fantasiosas sobre fatos que ocorrem no percurso entre a prece e o seu resultado, o pretenso atendimento. Há em nossa consciência um campo muito favorável para a construção artificial do resultado: a imaginação. Esta, por ser livre, faculta-nos admitir inverdades, fantasias e similares como situações concretas, e estas, no presente contexto, adquirem mais robustez quando são assimiladas pelo imaginário popular, o senso comum. Cristaliza-se, por conseguinte, nas massas, um modo de conceber a realidade e o mundo, sem que a elas seja concedido qualquer estímulo de investigação aos atributos pretensamente divinos.

Cabe, todavia, perscrutar o curso histórico dessas ações e dimensionar a posição das igrejas cristãs, principalmente a da que se traduz na hegemonia católica. O cristianismo foi durante muito tempo marcado por sua ligação com os poderes constituídos, o que lhe permitiu constituir-se também como poder. A partir do século IV d.C., a Igreja criou vínculos tão estreitos com os monarcas, que em pouco tempo lhe era permitido compartilhar as decisões. Essa aproximação acabou por criar as condições necessárias para que a vida das pessoas fosse governada, durante muito tempo, por uma forma de poder inspirada no teocentrismo. A força do poder religioso era fundamentada no sobrenatural bem primitivo, mas criou raízes profundas nos povos através dos tempos, em decorrência das ligações da Igreja com os governantes. E as massas passaram a ter tão-somente o papel de rebanho, seguindo o caminho indicado pelos pastores, sem atentar que sua crença estava fortemente contagiada por estímulos supersticiosos. Muitas iniciativas de cunho científico foram travadas, por encerrarem conteúdos contrários à doutrina. Muitas pessoas tinham o curso da vida interrompido sob a acusação de heresia e contrariedade aos princípios cristãos. Ora, se as massas não tinham acesso ao conteúdo doutrinário do cristianismo e desconheciam, por isso, sua formulação teológico-filosófica, nada mais lhes restava senão exercer a superstição em todas as suas manifestações. Ao longo dos anos, porém, há igualmente a marcha do processo histórico e de modo lento, mas real, ocorrem mudanças. Eis como Hume as interpreta:

“...Quando examinamos as primeiras histórias de todas as nações, sentimo-nos inclinados a imaginar-nos transportados a um novo mundo, onde toda a trama da natureza está desarticulada e todos os elementos efetuam suas operações de uma maneira diferente que fazem na atualidade. As batalhas, as revoluções, a peste, a fome e a morte não são nunca efeitos de causas naturais que experimentamos. Prodígios, presságios, oráculos e punições divinas ocultam completamente os poucos eventos naturais que se misturam a eles. Mas, como seu número diminui a cada página, à medida que nos aproximamos das épocas das luzes, rapidamente compreendemos que não há nada misterioso ou de sobrenatural no assunto, mas que tudo decorre da tendência natural dos homens para o maravilhoso, e que, embora esta inclinação às vezes possa ser refreada pelo bom senso e pela instrução, não pode ser jamais extirpada da natureza humana.” (HUME: 1999, p.118)

O fragmento faz uma oportuna referência à peste, vinculando-a ao sobrenatural. Com efeito, qualquer doença que adquira atualmente a dimensão de endemia ou epidemia já não mais recebe a interpretação mística da Idade Média. Quando é localizado qualquer foco de enfermidade, as autoridades adotam medidas saneadoras e profiláticas, a fim de debelar o mais rápido possível as suas causas, sem que lhes seja atribuída a significação de punição divina, conforme ocorrido em 1348, quando quase metade da população européia foi dizimada pela peste bubônica. Todavia, conquanto se constate esse crescimento na consciência das sociedades, encontra-se muito arraigada entre nós a prática do curandeirismo e da solução religiosa para a cura de doenças cujo diagnóstico acuse, entre outras causas, influência demoníaca nos corpos dos enfermos. E não é preciso ir muito longe para identificar pessoas que vivenciam esses princípios: em setores onde são apregoados valores de emancipação e autonomia, como a educação, é possível encontrar quem atribua às forças do mal a origem de problemas afetivos, financeiros e de saúde; para solucioná-los, a receita está em uma igreja. Em outro espaço deste trabalho, será examinado, por amostragem, o resultado da pesquisa realizada entre estudantes de pedagogia, relativamente a suas posições diante da experiência religiosa.

Faz parte do presente conjunto de investigação o exame do poder da oração, tal qual é aceito pelos fiéis dos diversos credos. Ele é dos instrumentos mais valiosos quando se trata de resolver aflições e demandas, quer de ordem material ou de necessidade espiritual. Como se trata de recurso do qual não se conhece a antigüidade, quase chegamos a afirmar que ele nasceu com o ser humano. Todos as crenças dele se valem, em conta seu valor mágico e sua capacidade de tornar possível o impossível, pois é assim que os adeptos de todos os credos o concebem. Em alguns credos ditos evangélicos, pentecostais e ramificações do protestantismo, é muito comum a expressão “vou orar”, quando se impõe a necessidade de resolver algo que está pendente; nestes casos, a freqüência maior se verifica nos casos que requerem solução imediata, de ordem material. Mas o mundo católico não fica atrás e ainda conta com um reforço todo especial no encaminhamento das preces, a figura do santo. Este se notabilizou por suas virtudes, por seu ascetismo e, enfim, por sua dedicação à causa divina, o que lhe permitiu a ascensão “post-mortem” na escala hierárquica da igreja em questão. Os devotos depositam nos santos a esperança da solução para suas iminentes necessidades. É muito comum ouvir testemunhos de pessoas que se dizem curadas de sérias enfermidades pelo poder da oração, qualquer que seja o credo. Quando se trata de um fiel do catolicismo fortemente contagiado pelo senso comum, ele atribui quase sempre a cura a seu santo de devoção. Mesmo que a assistência médica tenha sido permanente no acompanhamento do caso, e é o que sempre ocorre, ele sempre atribuirá a obtenção da graça à oração e a seu intermediário junto à autoridade divina, o santo.

Com efeito, quem se aventurará a trocar algo que está consagrado como real e faz parte de um sentimento coletivo, onde todos se sentem irmanados, amalgamados e protegidos? Por que, de repente, o fiel se envolveria numa questão altamente polêmica, sabendo, de antemão, que a antítese de seu pensamento não lhe oferece nenhuma graça na vida terrena e muito menos lhe garante a vida eterna? Provavelmente, por não saber que a vida cética é examinada por seus adeptos, não decorre de nenhum instrumento cultural coercitivo e passa por todos os rigores exigidos por uma reflexão. Ela não tem, de fato, o poder de ungir os seres humanos a outra dimensão da vida, mas lhes faculta, sem dúvida, um exercício vital plenamente consciente, um exercício que valoriza a vida enquanto vida. Conforme já explicitado anteriormente, o que se propõe é a validação da escolha pelo sujeito. Os exemplos acima pretendem mostrar que a grande massa de fiéis ou crentes nada escolheu e sim absorveu um ensinamento, na infância, sem que lhe fosse permitido avaliar minimamente a evidência de seu conteúdo. A sua prática diuturna, aliada a uma mensagem atraente e sedutora, conduz cada membro do rebanho, a partir do limiar de sua consciência, a admitir o pensamento religioso como insubstituível, tornando-o inexpugnável, de acordo com a citação freudiana contida neste trabalho.

Friedrick Wilhelm Nietzsche (1844-1900), um dos mais consagrados filósofos que a humanidade já conheceu, atentou para as soluções que o humano exibe quando se lhe apresenta uma dificuldade do tipo acima citado. Ele revela que há uma natural tendência para o mágico, para o artificial, desde que suas expectativas nele encontrem guarida. Num célebre ensaio denominado Sobre a Verdade e a Mentira no Sentido Extra-Moral, o pensador faz uma denúncia sobre os procedimentos humanos em sua relação com o desconhecido encantador, demonstrando que nossa fragilidade é responsável, na maioria dos casos, por escolhas que não possuem um mínimo de respaldo lógico. Vale transcrever o trecho da obra que faz referência a esses procedimentos:

É também em um sentido restrito semelhante que o homem quer somente a verdade: deseja as conseqüências da verdade que são agradáveis e conservam a vida; diante do conhecimento puro sem conseqüências, ele é indiferente; diante das verdades talvez perniciosas e destrutivas, ele tem disposição até mesmo hostil. (NIETZSCHE, 1983: p. 46-47)

Obviamente, Nietzsche critica a verdade que é apresentada pelos defensores da religião, os quais, segundo o pensador, estabelecem como verdadeiro todo o conhecimento que justifica a existência de vida ultraterrena. Nessa acepção, ele procura demonstrar que o ser humano está mais inclinado a seguir a moral de escravo, de fraco, que reagir afirmativamente, no sentido da vontade de potência que lhe é imanente. A crítica do filósofo remete-nos ao período clássico da filosofia grega, quando o pensamento socrático-platônico cria as bases para o que, mais tarde, seria o fundamento do cristianismo e de seu grande instrumento de controle das massas, a moral judaico-cristã.

A exemplo do procedimento adotado em tópico anterior deste trabalho, quando procurei demonstrar a sintonia dos pensamentos de Dürkheim e Chauí, autores que se manifestaram sobre o mesmo tema com diferença de aproximadamente 100 anos, considero oportuno estabelecer nova analogia entre outros dois filósofos: o supracitado Nietzsche e David Hume. É possível observar, com o excerto abaixo, que, quase 200 anos antes, o escocês divulgava semelhante diagnóstico, não obstante vivesse em tempos de excessivo controle do pensamento pela Igreja. Analisemos então:

"A maioria dos homens têm tendência natural para manifestar suas opiniões de modo afirmativo e dogmático e, como visualizam os objetos sob um único aspecto e como não têm qualquer idéia de argumentos opostos, lançam-se precipitadamente aos princípios para os quais estavam inclinados e não são indulgentes com aqueles que abrigam opiniões contrárias. A dúvida ou a suspeita gera perplexidade em seu entendimento, bloqueia sua paixão e interrompe sua ação. Portanto, impacientes para escapulir de uma situação que lhes é tão desagradável, os homens supõem que unicamente aderindo às afirmações violentas e crenças obstinadas conseguirão afastar-se o bastante dela. Mas, se tais homens que raciocinam dogmaticamente pudessem ter consciência da singular fragilidade do entendimento humano, inclusive em seu estado mais perfeito e quando é mais rigoroso e prudente em suas resoluções, semelhante reflexão os inspiraria naturalmente a ter mais modéstia e reserva, diminuindo a exagerada opinião que têm de si mesmos e seus preconceitos contra os adversários". (HUME, 1999: p.151,152)

Nessa perspectiva, cumpre avaliar como reage o ser humano diante desse rolo compressor que é a cultura dominante de seu grupo social, tendo como principal articulador o pensamento religioso. Tais reações, procurarei descrevê-las em consonância com as respostas que foram solicitadas a alguns alunos de pedagogia e, naturalmente, devo considerá-las como possível confirmação da hipótese. A consulta se realizara por meio de questionário, e as perguntas estariam fundamentadas nas conjecturas que deram origem a este trabalho. É bem verdade que outras considerações serão levadas a efeito, a fim de complementar um raciocínio que está demonstrado não apenas por respostas de um questionário, mas também por observações feitas em outras instâncias, tais como discussões dentro e fora da sala de aula, diálogos do cotidiano e demonstrações espontâneas de afinidade com a mensagem religiosa.

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